trabalho: entre obrigação e significado... - #dd23
- du
- 28 de jul.
- 9 min de leitura
Atualizado: 13 de ago.
o trabalho ocupa um lugar central em nossas vidas..... não apenas pelo tempo que dedicamos a ele, mas por como molda nossa identidade, nossas relações e nossa visão de mundo.....
desde a infância, somos perguntados sobre "o que queremos ser quando crescer" - uma pergunta (não trago em minha memória ocasião que essa pergunta me foi feita, tão pouco se eu tinha uma resposta na minha infância….. e ainda não tenho) que, na verdade, questiona qual trabalho queremos realizar..... como se nossa existência pudesse ser resumida à nossa função produtiva.....
mas o que é, afinal, o trabalho???? uma obrigação necessária para sobreviver??? uma fonte de realização pessoal?? um meio de transformação social????? ou talvez todas essas coisas simultaneamente, em uma complexa teia de significados que varia para cada pessoa e cada contexto???
como escreveu o filósofo albert camus: "sem trabalho, toda vida apodrece. mas quando o trabalho é sem alma, a vida sufoca e morre"..... talvez esteja aí uma pista importante: não é apenas a presença ou ausência do trabalho que importa, mas sua qualidade, seu sentido, suas recompensas, sua conexão com quem somos e o que valorizamos.....
curiosamente, até mesmo na física o conceito de trabalho carrega significados interessantes.....
na mecânica, trabalho é definido como a energia transferida quando uma força move um objeto através de uma distância..... é preciso haver movimento, transformação, para que exista trabalho.....
uma força que não produz deslocamento, por maior que seja, não realiza trabalho no sentido físico..... talvez essa definição nos ofereça uma metáfora para pensar: quanto do nosso esforço diário produz real transformação??? quanto dele apenas consome nossa energia sem gerar movimento significativo???
♦ as metamorfoses do trabalho ♦
o conceito de trabalho passou por profundas transformações ao longo da história humana.....
na grécia antiga, o trabalho manual era visto como inferior, próprio de escravos, enquanto a contemplação e o pensamento eram valorizados como atividades verdadeiramente dignas dos cidadãos livres.....
na idade média, o trabalho ganhou uma dimensão espiritual através dos mosteiros beneditinos e seu lema "ora et labora" (reza e trabalha), que via no trabalho manual uma forma de disciplina e espiritualidade..... com a revolução industrial, o trabalho se fragmentou, se mecanizou, se distanciou do artesão que antes controlava todo o processo produtivo.....
como observou karl marx: "o trabalho que deveria ser a afirmação do ser humano tornou-se sua negação".....
essa afirmação de marx é fundamental para entender a transformação que ocorreu: antes da industrialização, o trabalho artesanal permitia que a pessoa expressasse sua criatividade e habilidade no produto final, reconhecendo-se naquilo que criava.....
com a fragmentação do processo produtivo, o trabalhador passou a executar apenas uma pequena parte repetitiva, perdendo a conexão com o produto final e, conseqüentemente, a possibilidade de se reconhecer e se realizar através de seu trabalho.....
o que deveria ser uma atividade de expressão humana tornou-se uma forma de alienação.....
mas e hoje????
vivemos em um momento de nova transformação, com a automação, a inteligência artificial, o trabalho remoto e a economia de plataformas redesenhando completamente o que significa trabalhar.....
como aponta a socióloga dominique méda: "o trabalho não é uma categoria antropológica, isto é, uma invariante da natureza humana, mas uma categoria histórica, ligada a uma época particular"..... o que consideramos "trabalho" é uma construção social imposta e em constante evolução.....
♦ trabalho e identidade: somos o que fazemos? ♦
"o que você faz??" - essa é geralmente uma das primeiras perguntas que fazemos ao conhecer uma pessoa..... e a resposta esperada não é sobre hobbies ou paixões, mas sobre trabalho remunerado.....
nossa sociedade estabeleceu uma forte conexão entre trabalho e identidade pessoal..... somos médicas(os), professoras(es), motoristas, vendedoras(es), programadoras(es)..... nosso valor social e, muitas vezes, nossa própria auto-estima estão atrelados à nossa ocupação.....
mas o que acontece quando não cabemos em uma única definição profissional??? quando somos múltiplos, diversos em nossas habilidades e interesses???
eu mesmo , como várias outras pessoas, vivo esse dilema intensamente: sou escritor, designer, músico, fotógrafo, produtor, professor, massagista, social media, iluminador cênico, compositor, sonoplasta, dono de casa e tantas outras coisas..... qual dessas identidades me define??? todas elas??? nenhuma delas??? como responder à pergunta "o que você faz?" quando o fazer é tão múltiplo e fluido????
a filósofa hannah arendt disse: "o que quer que façamos, devemos fazê-lo para 'ganhar a vida'; este é o veredicto da sociedade"..... será???
mas essa fusão entre ser e fazer traz conseqüências.....
o que acontece quando perdemos o emprego??? quando nos aposentamos??? quando adoecemos e não podemos mais exercer nossa profissão???? se somos o que fazemos, quem somos quando não podemos mais fazer???
o psicólogo viktor frankl, sobrevivente do holocausto, observou que "o trabalho não é a única maneira de encontrar significado na vida. o significado pode ser encontrado não apenas no trabalho, mas também no amor e no sofrimento"..... eu diria até em mais coisas….
então, talvez, o desafio seja justamente encontrar um equilíbrio, reconhecer a importância do trabalho em nossa identidade sem reduzir toda nossa existência a ele.....
até porque nem todo trabalho é reconhecido como tal.....
♦ os trabalhos invisíveis ♦
o cuidado com crianças, idosos e doentes, majoritariamente realizado por mulheres dentro das famílias, raramente é contabilizado nas estatísticas econômicas ou remunerado adequadamente quando profissionalizado.....
como apontou a economista feminista marilyn waring: "se você não é pago por seu trabalho, seu trabalho literalmente não conta".....
mas, além do trabalho de cuidado, há inúmeras outras formas de trabalho invisibilizado: o trabalho doméstico, o trabalho comunitário, o trabalho voluntário, o trabalho emocional que realizamos ao gerenciar sentimentos e relacionamentos.....
a escritora e ativista silvia federici argumenta que "o trabalho doméstico não remunerado foi naturalizado como um atributo natural da psique e personalidade feminina, um trabalho interno que não precisa de remuneração".....
ou seja, essa invisibilidade não é acidental, ela é estrutural, reflete e reforça hierarquias de gênero, raça e classe que determinam quais trabalhos são valorizados e quais são tomados como dados a recortes específicos da sociedade e logo minorizados.....
e aqui tocamos em outra questão fundamental: o acesso ao trabalho e, por extensão, o acesso a "ser algo"..... em uma sociedade que define valor pessoal pelo trabalho, quem não tem acesso a determinadas ocupações também não tem acesso a determinadas identidades e ao reconhecimento social que vem com elas..... que talvez nem devessem estar, assim, agregados…..
pessoas com deficiência, pessoas negras, indígenas, imigrantes, pessoas trans e tantos outros grupos marginalizados enfrentam barreiras sistemáticas no acesso a certos tipos de trabalho e, consequentemente, no acesso a "ser alguém" nos termos que a sociedade valoriza.....
reconhecer esses trabalhos invisíveis e essas barreiras de acesso é um passo essencial para uma compreensão mais justa e completa do que significa trabalhar em nossa sociedade.....
♦ para além do produtivismo ♦
vivemos em uma cultura obcecada por produtividade.....
acordamos com alarmes, tomamos café para "funcionar melhor", usamos aplicativos para otimizar nosso tempo, sentimos culpa quando "perdemos tempo", celebramos quem trabalha muitas horas como exemplo de dedicação.....
como observou o filósofo byung-chul han: "a sociedade do desempenho e a sociedade ativa geram um cansaço e esgotamento excessivos. esses estados psíquicos são característicos de um mundo que se tornou pobre em negatividade e que é dominado por um excesso de positividade".....
essa lógica produtivista tem custo: burnout, ansiedade, depressão, relações fragilizadas, desconexão de si mesmo, síndromes e mais síndromes.....
mas de onde vêm esses padrões de produtividade que internalizamos??? são realmente nossos ou foram sutilmente implantados por um sistema que se beneficia de nossa exaustão??
a filósofa e ativista silvia federici argumenta que "o capitalismo deve justificar e mistificar as contradições embutidas em suas relações sociais... ao apresentar o trabalho como uma condição natural e o trabalho para o capital como atividade que emancipa".....
em outras palavras, somos levados a acreditar que trabalhar mais, produzir mais, ser mais eficiente é bom para nós, quando na verdade essa lógica serve primordialmente aos interesses do capital, não ao nosso bem-estar.....
talvez seja hora de questionar: trabalhar mais é sempre melhor??? produzir mais é sempre desejável???? eficiência é sempre o valor mais importante??
o movimento slow work, por exemplo, propõe uma abordagem diferente: trabalhar com mais presença e menos pressa, valorizar a qualidade sobre a quantidade, respeitar os ritmos naturais do corpo e da mente.....
paralelamente, o movimento vat (vida além do trabalho) tem ganhado força no brasil, sendo uma das bases para as reivindicações pelo fim da escala 6x1 (seis dias de trabalho e apenas um de ‘descanso’, do trabalho formal)..... o vat defende que o trabalho deve ser apenas uma parte da vida, não sua totalidade, e que precisamos de tempo para família, lazer, descanso, estudo, participação comunitária e política..... para si e para se entender no e com o mundo….
como escreveu o poeta walt whitman: "eu me deito e me estendo sobre a terra para escutar as histórias da grama crescendo"..... há sabedoria em saber quando parar, quando contemplar, quando simplesmente ser.....
♦ trabalho e sentido: a busca pelo ikigai ♦
da cultura japonesa emerge o conceito de "ikigai", o ponto de intersecção entre o que você ama, o que o mundo precisa, o que você pode ser pago para fazer e o que você é bom em fazer.....
essa busca por um trabalho que seja simultaneamente prazeroso, útil, viável economicamente e alinhado com nossas habilidades parece ser um ideal cada vez mais presente em nossa sociedade..... visto a sua presença cada vez maior em discursos de coach’s e em redes sociais…..
não discordo do conceito, mas quão realista é essa busca??? quão acessível é esse ideal???
para muitas pessoas, o trabalho continua sendo primordialmente uma questão de sobrevivência, não de realização pessoal..... como disse a escritora toni morrison: "você não é o trabalho que faz; você é a pessoa que faz o trabalho"..... diria até ‘uma pessoa que faz o trabalho’, só mais um número descartável….
talvez o desafio seja duplo: por um lado, lutar por condições materiais que permitam que mais pessoas possam escolher trabalhos significativos; por outro, encontrar significado mesmo em trabalhos que não são ideais, reconhecendo que o valor de uma pessoa nunca se reduz à sua ocupação.....
como sugeriu o filósofo alain de botton: "nossa capacidade de derivar significado do trabalho depende crucialmente da maneira como enquadramos nossa relação com ele".....
♦ reinventando o trabalho ♦
estamos em um momento de profunda transformação no mundo do trabalho.....
a pandemia acelerou tendências como o trabalho remoto e híbrido..... a automação e a inteligência artificial prometem (ou ameaçam) substituir diversas funções humanas..... movimentos por redução da jornada de trabalho ganham força em vários países..... discussões sobre renda básica universal entram no debate público.....
ao mesmo tempo, enfrentamos uma epidemia de problemas de saúde mental relacionados ao trabalho..... os casos de depressão, ansiedade, burnout, e o reconhecimento de condições como transtorno do espectro autista (tea) e transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (tdah) têm aumentado significativamente.....
como o mercado de trabalho tem respondido a essas questões??
infelizmente, muitas vezes com discriminação e exclusão..... pessoas neurodivergentes ou com condições de saúde mental freqüentemente enfrentam barreiras adicionais no ambiente de trabalho, sendo vistas como "problemáticas" ou "difíceis de gerenciar", em vez de serem valorizadas por suas perspectivas únicas e habilidades específicas.....
a psicóloga e ativista devon price observa que "nossa cultura valoriza a produtividade acima do bem-estar humano"..... e acrescenta: "pessoas com tdah, autismo e outras formas de neurodivergência muitas vezes são punidas não porque seu trabalho seja ruim, mas porque a maneira como trabalham não se conforma às expectativas".....
como navegaremos por essas mudanças??? que tipo de relação com o trabalho queremos construir individual e coletivamente???? que resultados queremos do nosso trabalho??
a filósofa simone weil, que trabalhou em fábricas para entender a condição operária, escreveu: "o trabalho não deveria ser um sofrimento, deveria ser a expressão humana por excelência".....
talvez estejamos diante de uma oportunidade de reimaginar o trabalho, não apenas como meio de subsistência ou status social, mas como expressão autêntica de quem somos, como contribuição significativa para o mundo que compartilhamos, como atividade que honra nossa humanidade em vez de diminuí-la..... um trabalho que acolha a diversidade neurológica, respeite os limites do corpo e da mente, e reconheça que somos muito mais do que nossa capacidade produtiva, que esteja interessado em resultados que valham a pena coletivamente.....
como você tem vivido sua relação com o trabalho???
que aspectos dessa relação nutrem sua alma e quais a drenam????
que pequenas ou grandes mudanças poderiam tornar seu trabalho mais alinhado com seus valores e necessidades básicas e mais profundas????
no fim das contas, talvez a questão não seja apenas que tipo de trabalho fazemos, mas que tipo de vida queremos viver e que tipo de mundo queremos criar juntas(os).....
no mais, até mais!!!
espalhe estas inquietações para outras(os) e até a próxima verdade absoluta!!!!
compartilhe suas experiências nos comentários...
sua opinião é importante....
quer mergulhar em outras reflexões profundas???
no último ensaio exploramos conceitos diferentes e semelhantes que por vezes confundimos.....
vale a pena conferir!... [leia aqui]
__________________________________
me siga no instagram @venturimdu
e considerem apoiar o projeto a partir de R$ 5,oo
chave pix para apoiar: pix.ducanal@gmail.com
(sim, é um email feio e sem glamour - mas o café que ele proporciona é real e aquece o coração....)
__________________________________
vamos construir um espaço rico em troca de idéias e reflexões

"m•nte"
Comments